Por Paulo Panayotis
Beaune, Borgonha / França - A noite cai e a cada passo, pelas ruas de Beaune, penso nas milhares de garrafas que repousam embaixo dos meus pés. Para quem não sabe, a capital dos vinhos de Borgonha tem inúmeras caves subterrâneas que guardam segredos há milhares de anos.
Desço as escadas da cave. A pequena entrada não dá a dimensão do tamanho da surpresa que encontro pela frente, ou melhor, lá embaixo. Estou em uma adega particular, meticulosamente escolhida para uma degustação de vinhos raros, a convite de um dos maiores conhecedores de vinhos raros da Borgonha. Se, no século XVIII Beaune se tornou o centro do comércio dos vinhos da região, no século XXI é o lugar perfeito para iniciar o caminho para grandes descobertas da Borgonha.
“Só tenho aqui garrafas com no mínimo 20 anos. São vinhos escolhidos um a um, produzidos por métodos ancestrais, sem adição de nenhum tipo de química”, explica Jean-Claude Cará, especialista em vinhos de guarda e autor do livro Vinhos da Borgonha. Entre uma explicação e outra, ele me mostra um Vosne-Romanée de 1926 e um Vouvray cujas marcas do tempo estão visíveis no rótulo. Reluto em segurar as garrafas com minhas próprias mãos. Se escorregar e cair, o prejuízo é bem maior que simplesmente dinheiro.
Na pequena cave, quatro casais observam as garrafas ao redor, enquanto degustam três vinhos. O primeiro é uma brincadeira séria de Jean-Claude: um tinto da Alsácia elaborado com a uva pinot noir. Pinot Noir? Mas o que a uva emblemática da Borgonha está fazendo numa garrafa de uma região tipicamente de uvas de clima mais frio, na fronteira com a Alemanha? A resposta é rápida e surpreendente! Em 1983, a Alsácia teve um veranico, ou seja, uma onda de calor inesperada durante o inverno. Na França, o veranico tem o prosaico nome de "canicule". Na mesma época a Borgonha enfrentava temperaturas acima da média. O resultado, segundo ele, é que a Alsácia produziu vinhos de qualidade e a Borgonha teve um ano com vinhos de qualidade inferior. Raro, porém possível. O segundo vinho, um tinto da maison E. Guigal da década de 80, também pinot noir, abre o paladar para o jantar que se aproxima. Um excelente Borgonha típico de estalar os beiços. Para encerrar, outra brincadeira do mestre de vinhos da Borgonha: "Que vinho é este? pergunta ele. Eu arrisco um Montrachet? O outro casal palpita: um Pouilly-Fuissé! Os "chutes" comprovam que cada pedacinho de terra desta região tem potencial para a produção de vinhos totalmente distintos. “Na hora de escolher, nem sempre só a marca é sinônimo de um grande vinho. A procedência e o método de fabricação são fatores importantes”, explica Cará. E complementa: "este vinho que vocês tomaram é um Borgogne Aligoté, de 1997, um vinho simples e que não chega a custar dez euros!"
Apaixonado pelos vinhos fabricados com métodos ancestrais, ele mostra, na prática e com humor ironicamente refinado, a diferença entre os vinhos de guarda e os chamados tecnológicos. Boa essa brincadeira! Gostei! "Revela, completa Cará, que grande parte dos apreciadores de vinho, em todo o mundo, compra e bebe "marca" e nem sempre qualidade". Essas são apenas algumas das milhares de histórias guardadas nesta cave milenar. De volta do mergulho no mundo dos vinhos, volto ao mundo real, às ruas de Beaune.
A cidade se revela mágica dentro das antigas muralhas, cujas marcas ainda são visíveis! Uma pequena cidade com apenas 20 mil habitantes que se mostra viva, emocionante, atual, autêntica, cheia de lojinhas adoráveis, delicadas confeitarias, museus e muita, muita história. Não está na hora de você conhecer algo novo na França além de Paris?
Fotos: Paulo Panayotis & Adriana Reis.
Paulo Panayotis é jornalista profissional, ex-correspondente internacional de TV, escritor, mora pelo mundo e especialista em curadoria para a Grécia e a França.
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